quinta-feira, agosto 03, 2006

A tchuba dja tchiga

Tchuba di Verão.
Manhã bem cedo e o céu já em grande pranto e profundo cinza.
Parecia que tudo ía desabar.
Depois de muitos momentos nos últimos dias que têm ameaçado tchuba, finalmente… chegou a água!
A pessoa com quem trabalho no Cliente telefona a avisar que posso ficar a trabalhar no hotel, pois ela está retida em casa. Com as pequenas cheias que se foram criando, não consegue sair de casa. Digo ok, dividimos os trabalhos para esse dia, pois há muita coisa para fazer e o tempo não perdoa. Mudo de roupa, calço chinelos. Para sair do quarto, os pés têm de entrar na água. O hotel parece Veneza, com a diferença que não se vêm barquinhos e não há ninguém a cantar o sole mio… Contudo, grande trânsito “marítimo”, pois já todos andam a tentar desentupir as zonas de escoamento de água, entupida de terra e raízes.
O dia resultou em confusão geral na ilha de Santiago, onde mais choveu, pois ninguém esperava que a primeira chuvada séria do ano fosse assim. Foi o caos. Acidentes, pessoas retidas em autocarros, um autocarro que quase caiu de um penhasco, a Cidade Velha foi invadida pela lama e várias estradas cortadas. Com o problema dos cortes de electricidade à mistura… a população anda com os nervos à flor da pele. A Protecção Civil não chegou para as encomendas. No meu hotel o gerador pifou mais uma vez e ficámos sem luz e água. Decidi ir trabalhar para o hotel vizinho, mas entretanto tudo regressou à normalidade.
No final do dia, o Sol rompeu, o calor, sempre mais que muito. De Julho a Setembro o tempo é mais quente e húmido e é a época das chuvas (quando chove…). Com esta chuva, a primeira barragem construída em Cabo Verde, aqui em Santiago (no concelho de Sta Cruz) e inaugurada em Julho deste ano vai começar a encher. Obra feita por chineses e oferta da República da China, estima-se que levará até 30 anos para encher completamente. Mas este é o primeiro caminho para aproveitar a água das intensas chuvas que, ao longo dos anos, se perde, quando escoa para o mar.
Na maior parte das ilhas, a agricultura é ainda a maior fonte de subsistência da população. E em Santiago o mesmo se passa. No interior, entre montanhas sinuosas e nas suas encostas, as gentes correram a lançar as sementes à terra. Em breve, o tom castanho-vermelho ficará coberto de côr verde. No ar ainda há um cheirinho a terra nolhada. A tchuba é a maior bênção por aqui.

segunda-feira, julho 24, 2006

Por terras de Morabeza...

O saldo de uma semana: positivo. Chegar ao Sal com o calor húmido e abafado que nos impede de respirar e que nos faz transpirar e colar a roupa à pele. O cheiro típico da humidade no ar. A terra vermelha.
A praia... de areia fina e branca, o mar de um azul perfeito e água morna e completamente transparente. Por momentos esqueci que a razão da vinda a Cabo Verde era profissional e não férias. Infelizmente.
A morabeza dos cabo-verdianos é sedutora e não queremos ir embora. Para minha tristeza, cerca de 24 horas depois parti para a Praia, capital, Ilha de Santiago. Vida mundana e de árduo trabalho. O hotel onde me instalo é... bestial!!!! :-) (podem espreitar em http://www.oasisatlantico.com/grupo.html?id=9&catg=1413).
A segunda-feira estava já reservada para árduo trabalho no Ministério da Justiça. O Projecto é deveras interessante e o trabalho mais que muito. A pessoa com quem trabalho directamente no Ministério foi uma completa e agradável surpresa, mas o ambiente é de... workaholicismo... para mal dos meus pecados. Ainda não deu para aproveitar a piscina do hotel em condições.
A primeira semana deu direito a conhecer o Ministro da Justiça, a participar numa tomada de posse com apresentação do Projecto... com direito a cobertura televisiva... e todas as segundas o Ministro faz um ponto de situação de manhã, para saber como andam a correr os trabalhos. Os contornos políticos são mais que muitos e o jogo de cintura é quase como andar a dançar o funáná.
Parece que começo a fazer umas amizades. Os meus preferidos são o Lucas (sempre com o seu amigo Jôni), que deve ter 9 anos e que sempre pede moedas para um peditório que visa a compra de equipamento de futebol para a sua equipa, dança e canta-me uma canção que fez para a Sandri (Sandrinha) por quem se apaixonou e foi embora; depois há o Beto, o taxista que agora sempre chamo quando preciso, que adora a sua filha Patrícia de 3 anos e que ainda não casou, pois para casar, só com alguém que ame de verdade...
Este fim-de-semana fui ao Tarrafal e prometo escrever sobre isso e a todas as sensações que a viagem até lá me proporcionou. Também prometo escrever sobre o Lucas e o Beto.
O calor continua, a falta de electricidade também e... parece que a tchuba dja chegá.
Sôdade.

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Gostava de ter uma janela aberta sobre o mar.
Onde me perdesse no azul e saísse a navegar, a bordo do meu pensamento, por todas as paragens distantes, parando em todos os portos, consumindo a agitação, a azáfama e os risos e sorrisos, e os cheiros e as cores e os sabores. Podendo depois voltar, à minha janela aberta sobre o mar. E sempre regressar e regressar, pelos caminhos das minhas memórias, a todas as paragens, cujas imagens guardadas e encafoadas, me fazem sonhar.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Romanticídio

Que se passa hoje com as pessoas?
Quem anda, afinal, a dar cabo do romance?
Porque se entregam as pessoas ao mais fácil?
Porque se contentam com o pouco?
Porque optar pelo ordinário e não pelo extraordinário?
Já ninguém acredita no romance?
Em fazer figuras tontas? Ridículas?
Que é feito dos corajosos?
Que é feito dos audazes? (Esqueceram que a sorte os protege?)
Se olharmos em volta e pensarmos nas pessoas que conhecemos, conseguimos dizer quem é de facto feliz? Parece que as pessoas tentam procurar, desesperadamente (na verdadeira acepção da palavra), o seu par. Depois, entregam-se a uma vida de sofá e pantufas. Em que a vida a dois nasce... porque faz parte de um processo social. É assim. Faz parte. E depois têm filhos.
Já poucos se entregam ao romance, como se este não tivesse já qualquer credibilidade. Como se já ninguém acreditasse ter algo especial reservado.
Ainda existe alguém que se apaixona de verdade? Ou que vive uma vida romanceada?
Já ninguém acredita naqueles amores desmedidos das histórias encantadas? O amor até pode não ser eterno, ou ser eterno... enquanto dura; e descobrirmos que tem muito mais de efémero... mas que importa isso?
Já ninguém acredita nos amores em que se morre, renasce, em que ganha, se perde...?
E quando um dia a vida findar, alguém irá interrogar-se se algum dia viveu intensamente um romance?
Cambada de romanticidas.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Aos Meus Amigos

Amigos,

A histórias deste blog são para partilhar convosco.
Alguns de vós são meus amigos há anos, outros mais recentes, mas todos têm um papel muito especial e determinada importância na minha vida. E sei que alguns de vós sabem o papel que ocupam na minha vida e, mesmo quando não nos encontramos frequentemente, o nosso encontro sempre existe. Não querendo desfazer em muitos de vós, sei que um número mais reduzido sabe que não poderia viver sem existirem no meu mundo. Obrigado por fazerem parte da minha vida.

Deixo-vos umas palavras de Vinicius de Moraes, que não poderiam elucidar melhor o que vos tento dizer.



"Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos. Não percebem o amor
que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles.

A amizade é um sentimento mais nobre do que o amor, eis que permite que o
objeto dela se divida em outros afetos, enquanto o amor tem intrínseco o
ciúme, que não admite a rivalidade. E eu poderia suportar, embora não sem
dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se
morressem todos os meus amigos! Até mesmo aqueles que não percebem o
quanto são meus amigos e o quanto minha vida depende de suas existências
A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem. Esta mera
condição me encoraja a seguir em frente pela vida. Mas, porque não os
procuro com assiduidade, não posso lhes dizer o quanto gosto deles. Eles
não iriam acreditar. Muitos deles estão lendo esta crônica e não sabem que
estão incluídos na sagrada relação de meus amigos. Mas é delicioso que eu
saiba e sinta que os adoro, embora não declare e não os procure. E às
vezes, quando os procuro, noto que eles não têm noção de como me são
necessários, de como são indispensáveis ao meu equilíbrio vital, porque
eles fazem parte do mundo que eu, tremulamente, construí e se tornaram
alicerces do meu encanto pela vida. Se um deles morrer, eu ficarei torto
para um lado. Se todos eles morrerem, eu desabo! Por isso é que, sem que
eles saibam, eu rezo pela vida deles. E me envergonho, porque essa minha
prece é, em síntese, dirigida ao meu bem estar.

Ela é, talvez, fruto do meu egoísmo.

Por vezes, mergulho em pensamentos sobre alguns deles. Quando viajo e fico
diante de lugares maravilhosos, cai-me alguma lágrima por não estarem junto
de mim, compartilhando daquele prazer ... Se alguma coisa me consome e me
envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu
lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo,
todos os meus amigos e, principalmente, os que só desconfiam ou talvez
nunca vão saber que são meus amigos! A gente não faz amigos, reconhece-os."

Domingos, Vendedor de Rosas


Esta foi uma história, das muitas que vivi em S. Paulo.
Durante o tempo em que vivi nessa cidade - a qual estranhei e depois entranhei - esta foi uma das muitas histórias que enviei por mail para os meus amigos e familiares, que assim me íam acompanhando.
Das coisas que mais tocaram foi descobrir, no meu regresso, que a minha família se reuniu alguns serões, a lêr as histórias das muitas aventuras que lhes fui enviando.


Em São Paulo é comum encontrarmos vendedores de rosas com as suas bancas. Dois cavaletes e uma tábua em equilíbrio. E um everest de rosas: brancas, vermelhas, rosas e laranjas – estas são as minhas preferidas.
Caminhando sempre a pé até ao local de trabalho, todas as manhãs passei pelo Domingos e pela sua banca. Todas as tardes também, no final do dia.

Decidi alegrar com vida e côr o apartamento e a primeira vez que parei para negociar com o Domingos a disputa foi renhida. A meia dúzia das rosas tinha um preço excessivo e as rosas um pouco murchas. Principalmente as laranjas, as que mais cobiçava. Domingos lançava números de um lado, eu do outro, … até que fui peremptória ao afirmar que pelos preços que ele pretendia não levaria tão poucas rosas. Pior: as rosas laranjas estavam a ficar murchas. E ainda: que raio de rosas eram aquelas que não tinham cheiro? Aqui Domingos quis convencer-me que as suas rosas cheiravam maravilhosamente bem…
Propôs um lindo bouquet por um preço bastante razoável. Bastante, volto a repetir. Apenas dez reais. Cerca de duas dúzias de rosas.
Pelo mesmo preço tinha começado por oferecer apenas 6...
O apartamento encheu-se de côr e Domingos tinha misturado rosas amarelas… ah!, estas tinham cheiro!

Nas manhãs seguintes Domingos sempre me presenteou com um “bom dia”, no seu largo sorriso de poucos dentes. Sempre retribuí. Mas o meu sorriso com dentes.
Poucos dias depois comprei novamente rosas. Entrámos numa espécie de acordo comercial. Por dez reais o Domingos compunha um belo bouquet. E este ritual foi-se repetindo.

Os sorrisos matinais e no fim do dia eram cada vez mais rasgados, bem como mais demoradas eram suas conversas.
É que Domingos sempre fala da vida dura que tem. Nunca conheceu outra. A sua vida sempre foi difícil, nasceu numa família de muitos irmãos, no Nordeste. Como a maior parte dos nordestinos, partiu em busca de uma vida melhor na Cidade Grande.
Pelo caminho e na infância, soube o que foi passar fome.
Mas tem orgulho no seu trabalho honesto, dá para viver muito modestamente, mas já ninguém passa fome. O filho andou na escola e é o seu grande orgulho. Faz parte da equipa da “Portuguesa” e caso não fosse bom... certo era que já o tinham retirado da equipa! , como ele refere, dando grande ênfase a este final.
Sonha com o dia em que o filho será um grande jogador de futebol... quem sabe um dia alguém não esteja atento ao seu talento e o leve para um grande clube. Um amigo de Domingos anuiu, abanando a cabeça, parece que o rapaz joga mesmo bem.

E enquanto Domingos fala no filho e nos sonhos que tem para ele, os seus olhos rodopiam e enchem-se de luz, juntando à conversa os seus rasgados e desdentados sorrisos.
Cada vez tem uma história diferente da sua vida para contar. E eu gosto de ouvir.
Por vezes passo no meio da multidão e vejo Domingos atarefado a borrifar as suas rosas. Quando penso que não me viu na sua azáfama, chama por mim e atravesso a rua. Mostra-me rosas e quando lhe digo que não é dia de comprar rosas... prepara um bouquet, embrulha-o, coloca-lhe um laço... e oferece-me. Elogia o meu sorriso e diz-me que também sou uma rosa como as que vende. Fico sem jeito. (Tem uma boa cantiga...)

Ainda não percebi, afinal, o que ele ganha com as rosas que me vende... oferece-me tantas rosas como as que compro.
Agora é ele que me arranja os pés das rosas, limpa os espinhos e repetidas vezes me dá as indicações de como tratar as rosas. As indicações mais importantes: não as colocar perto de ventiladores ou janelas abertas e adicionar açúcar à água. Cumpro à risca!

Domingos tem uma rosa no lugar do coração. E sem espinhos. É gente boa, simples e marcado pela vida. Daquelas pessoas em que cada ruga do rosto conta uma história diferente.
Admiro como com tão pouco sabe dar e partilhar. E não me refiro só às rosas, mas às histórias que me conta e que tanto gosto de ouvir.

Por todas as rosas bonitas, Domingos é uma delas também.


E amanhã é dia de comprar rosas.

Um Amor em Lisboa

O dia estava escuro e cinzento e o céu parecia que estava prestes a romper num pranto. Ele caminhava pela cidade, num mar de gente, entre pisadelas e encontrões, quase a sufocar. No meio de tanta gente - e sentia-se tão só. O que à partida poderia parecer tão acolhedor, não passava de uma enganadora solidão.
Todos lhe pareciam a mais horrível das criaturas e era como deambular nas ruas de um planeta desconhecido. Tudo tinha sido demasiado duro para poder apagar da memória. Diante de tão insípidas palavras tinha ficado com um travo amargo na boca.
Ele havia-se despedido apenas com um olhar breve, talvez sentido um profundo rancor.
O Sol já se punha sobre a cidade e ele saía - supostamente para as loucuras da noite.
A cidade estava já adormecida. Ele vagueava pelas ruas desertas, com um imenso desejo de solidão. Giravam-lhe ainda na cabeça todo o chorrilho de palavras que lhe havia dito. Como foi cruel, injusta, insensata...Porquê?! Continuou a caminhada. O eco dos seus passos começava a irritá-lo. Parou. Observava o rio, ao longe, com uma estranha passividade. A noite estava fria e o Sol tinha, há muito, cedido o lugar à Lua - que estava cheia - de angústia.
Tentou repensar, voltar a passar o filme de tudo o que havia acontecido, procurando explicações lógicas e pouco filosóficas da situação. Afinal, talvez ela não tivesse sido tão cruel, ou injusta, ou insensata. E ele, talvez até tivesse sido egoísta ou insensível. Vá lá saber-se.
Não aguentou esperar mais um segundo: virou costas ao Tejo e tomou o rumo de um sentimento mais forte; um sentimento de paixão que lhe ditava a direcção a seguir. Desejava que não fosse demasiado tarde.

Abriu os olhos: um corpo nu, recortado pelo Sol nos primeiros raios da manhã. Ela parecia um modelo de um velho quadro, pintada a óleo em tons pastel. Era linda, Admirava-lhe os contornos, sentindo um regresso à realidade, vivida em tons de azul. Seguia-lhe os curtos movimentos e beijou-a na face.
Era o acordar de um curto sono, de uma noite longa - que esperava ter chegado para sarar todas as feridas.
A Lua cedia agora lugar ao Sol.
A cidade começava a despertar e começava a ouvir-se um borborinho, próprio da azáfama da cidade. Ouviam-se os primeiros passos a subir a rua, vagarosos, próprios de quem de quem vai trabalhar, ainda ensonado, depois de uma noite curta e mal dormida.
Ela enroscou-se no lençol branco enquanto ele se levantou para ir até à janela. Na rua, do outro lado da estrada, um velho enroscado no que restava de um cobertor e coberto de jornais tiritava de frio. O aconchego não era muito e não era suficiente para o cobrir do frio, ou da fome, ou miséria, ou solidão. Deve ser triste estar-se só. Na cara do velho, enrugada e queimada do Sol e do frio, era impossível adivinhar-lhe a idade. Por certo lhe gelavam as mãos.
Afastou-se da janela, da rua, das pessoas, do velho e voltou a dormir. Decidiu que não ía trabalhar.
Ela dormia profundamente – estaria a ter um sonho bom?.
Desta vez tudo correra pelo melhor. Ainda bem que foi assim.

Para ser Onda...

Sofia.
Maria Isabel tinha já decidido que o seu primeiro filho, caso fosse menina, se chamaria Sofia. Se fosse menino, seria João Manuel, como o seu avô. Mas João Manuel só viria mais tarde, 2 anos depois de Sofia. Sofia era um bebé rosado e bonito. Maria Isabel adorava sentir-lhe o cheiro. Pegando nas suas pequeninas mãozitas, tentou adivinhar-lhe o futuro. Sentiu um aperto no coração e segurou uma lágrima teimosa quando pensou em sua mãe. Como teria gostado de conhecer Sofia. A sua mãe sempre a criou com grandes dificuldades, a si e às suas duas irmãs. Levava todo o santo dia a amassar pão. Teresa, a padeira, tinha a fama de bruxa e outras coisas que tais. Todos acreditavam ser humanamente impossível todo o pão que amassava. Não havia nas redondezas outra padeira que amassasse tanto como ela. E passava todo o santo dia em frente ao forno, alimentando-o ininterruptamente a esteva. Colhia as estevas secas de manhã bem cedo, antes da primeira galinha despertar. Durante todo o dia o ar era perfumado com o cheiro bom da esteva quando arde. Diziam na aldeia e redondezas que Teresa, a padeira, tinha um espírito, um fantasma, que a ajudava a amassar tanto pão, pois era impossível amassar tanto assim. Teresa anuía e bem sabia que esse espírito existia; o espírito de ter 3 filhas para criar. Sozinha. Era esse o seu espírito. Abandonada pelo marido e depois rejeitada pela família, por não ter sabido cuidar da casa e ser pouco submissa. Teresa era dona de uma forte personalidade. Demasiado forte, para uma época em que o papel da mulher não deveria ir além do saber subjugar-se ao seu marido. Teresa nasceu fora da sua época e nunca teve feitio para isso e menos ainda para desistir ou deixar de se entregar a uma batalha de alma e coração. A Maria Isabel e suas irmãs nunca faltou nada de comer ou vestir, mas tiveram que se habituar a viver com dificuldades e sem qualquer tipo de luxo. Com o passar dos anos, Teresa, que passou a amassar pão apenas para sua casa, foi-se tornando não só respeitada, mas admirada por todos. Os homens, não querendo demonstrar, sempre se intimidaram com a sua presença. Teresa pescava, caçava e matava cobras só com as mãos. Por duas vezes isso aconteceu. E homens da aldeia assistiram. Teresa valia por todos eles. Eles bem o sabiam.
Mas ... Sofia. ..
Sofia herdou da avó todo esse calibre, essa forte e vincada personalidade de quem nada teme e tudo enfrenta. Com uma particularidade: a Sofia foi permitido sonhar. Na sua vida não houve espaço para grandes dificuldades. Não se cansava de ouvir, repetidas vezes, as histórias da avó Teresa. Sentia uma tristeza grande por não lhe ter sido dada a oportunidade de a ter conhecido. Sofia tornara-se uma menina-mulher muito bonita. Constantemente assediada pelos rapazes, mas Sofia não queria saber de nenhum. Apaixonara-se numas férias por um francês de grandes olhos azuis e nunca mais o esqueceu. Amores de Verão. Ficam enterrados na areia. Sofia passava horas na praia, em longas conversas com o Mar e sempre que olhava o seu azul, encontrava os olhos azuis que não mais esquecera. Maria Isabel nunca percebeu o que Sofia e o Mar tanto tinham para conversar, mas achou que isso era lá entre eles e nunca fez grandes perguntas. Mesmo quando Sofia chegava tarde para jantar, por se perder nas horas. O pai ralhava, mas os olhos de amêndoa e doces de Sofia desarmavam qualquer um. E era com o Mar que se perdia, observando-lhe as ondas, enquanto o vento lhe afagava os longos cabelos escuros que iam dançando para para lá e para cá. O Vento tinha pena de Sofia e o Mar agitava-se de júbilo cada vez que ela aparecia. Parecia bruxedo, diziam-lhe os amigos. Mal aparecia na praia, logo se levantava uma ventania e o mar agitava-se de forma tal, que todos se íam embora. E Sofia ficava com o Mar e com o Vento só para ela. Apetecia-lhe abrir os braços e voar…. Várias vezes implorou ao Vento. Mas ele nunca deixou. Sem mais, resignava-se a contemplar as ondas, que se íam enrolando, enrolando, acabando por se desfazer em espuma. E o Mar ía-lhe murmurando baixinho tudo o que só Sofia entendia. Como Sofia desejava ser onda… Sofia nunca percebeu, mas o Mar apaixonara-se por ela. E Sofia continuava, dia após dia, a contemplar o Mar. E desejava ser onda… Até aquele dia, num esgar em que Sofia fitou Orionte, no Céu, e este lhe sorriu. Nunca Orionte lhe havia sorrido antes. Fechou os olhos e desejou ter um sonho bom. Sentiu um arrepio correr-lhe todo o corpo e a sua cabeça andou à roda. Sentiu-se a rodopiar e a enrolar, enrolar… Sentiu o azul e um gosto salgado. Sentiu-se espuma... como uma onda...

Manhã de Lisboa

Num destes Sábados de manhã passeava com um amigo pela zona da Lapa, recém-chegado de viagem. O passeio matinal tinha por objectivo a busca de um local onde tomar um bom pequeno-almoço.

Numa rua inclinada avistava-se o Tejo – azul, que reflectia um céu limpo de nuvens. O Sol de Outono deu um ar da sua graça e Lisboa estava cheia de luz; a luz que a caracteriza e que tanto apaixona o escritor, o turista, o realizador, o pintor, o fotógrafo ou o poeta. Uma luz própria, tão difícil de reproduzir em pastéis, óleos, aguarelas... ou em palavras.
Numa rua mais abaixo duas velhotas conversavam à janela e prontamente nos saudaram com “bom-dia”. Noutra janela antiga, um velho contemplava a rua e a movimentação das gentes, acompanhado por um bichano malhado a preto e branco que balançava a sua cauda peluda, deliciado bebaixo do Sol.

Numa rua mais abaixo, encontrámos um pequeno café. Balcão alto de mármore e mesas antigas de madeira. Um cheiro a torradas e café povoavam o ar e a Dª Augusta, de sorriso aberto, baixa, roliça, despachada e bem-disposta, perguntou o que iríamos querer.

Ali, as torradas são em pão de forma, cortadas generosamente... e com muuuuuita manteiga...
Atrás do balcão, um rádio em berros um pouco dissonantes, por estar mal sintonizado.

Algumas pessoas do bairro cumprimentavam Dª Augusta da porta, outras carregavam sacos de compras e entravam para perguntar do seu filho e netinhos. Lá fora ouvia-se a flauta do amolador, que adivinha chuva, como costuma dizer a minha avó. Mas neste dia, o ditado não se aplicou, pois o dia estava lindo. A Dª Augusta ía atirando algumas migalhas de pão no passeio, que logo se encheu de pássaros e pombos. Que grande rebuliço! Outra senhora entrou com a neta pela mão e adivinhou-se amena cavaqueira. Uma azáfama que só visto!
Saímos já com os estômagos reconfortados. Na rua ouvimos o pregão de uma senhora que carregava hortaliças para venda de porta a porta, aplicando o princípio de venda do produtor directamente ao consumidor.
Um velhote pintava as janelas de madeira, com a tinta antiga já rachada pelo Sol.

Passeámos entre as ruas e, por momentos, pareceu que o tempo parou. Através de um qualquer vórtice temporal (que poderia ser explicado num filme de ficção científica), fomos transportados a todos os filmes que nos inundam a memória, em que Lisboa se mostrava a preto e branco, em que existiam varinas, ecoavam pregões pelas ruas e os miúdos brincavam ao pião no meio da estrada. Os cantos e recantos são deliciosos e o cheiro dos almoços que se preparavam já se sentiam no ar. O vento embalava a roupa nos estendais por cima das nossas cabeças e alguns miúdos brincavam com as bicicletas.

Sem dúvida, Lisboa ainda guarda encantos de outros tempos que devemos ajudar a preservar – mas primeiro temos de os (querer) conhecer. Lisboa não parou no tempo, mas continua menina e moça. Ainda ecoam alguns pregões e os seus seios continuam a ser as colinas. Só já não existem varinas.


(Este texto foi publicado num dos primeiros números da revista Blue Living - revista de compra obrigatória!!)

Pela Serra de Sintra... a Pé...


Céu azul. Sintra sem névoa, num dia que amanheceu com Sol, quando se adivinhava chuva. E porque Sintra é sempre o avesso, o céu estava limpo. Junte-se a um grupo de pessoas que goste de caminhar e respirar ar puro, um guia que espalhe boa disposição – o resultado é um dia diferente, passado na Serra de Sintra, conhecendo novos lugares, recantos e ouvindo histórias – todas de encantar.
Equipamento necessário: mochila, cantil, boas botas para caminhada, polar e máquina fotográfica.
Nas mochilas pesa o farnel, mas no caminho pode comprar-se fruta deliciosa a quem a vende na beira da estrada, a caminho de Colares. O ponto de encontro foi a Aldeia do Penedo. Na aldeia, junto ao antigo coreto e frente à igreja, aguarda-se um pouco por quem demora a chegar. A vista é magnífica e estende-se dos vales até ao mar.
Iniciamos o trilho pelo Caminho da Boca da Mata, caminhando por entre diferentes matizes de verde, entrecortados por fantásticas vistas de mar e ouvindo os pássaros que, para nosso gáudio, teimam em chilrear. Paramos no Convento dos Capuchos e temos direito a visita guiada. Exploramos o Convento e imaginamo-nos em histórias de frades franciscanos (o convento deve o seu nome à veste típica destes frades). Aproveita-se a pausa para almoço, no cimo de uma pedra, observando aves de rapina e a paisagem. O nosso guia serve-nos chá e café.
O ponto alto é a entrada na Floresta Encantada. Sintra tem destas surpresas e, sem darmos conta, entramos no cenário de Sonho de Uma Noite de Verão. No chão, estende-se um tapete de heras a perder de vista e nos cedros e acácias as heras enrolam-se como num namoro sufocante. A visão é surpreendente. Ainda há tempo para subir até à Peninha e ouvir umas histórias mais, contadas pelo nosso guia.
Há dias assim, em que trocamos a manta, o livro e o chá pelo mundo lá fora. Porque há tanta coisa tão perto para conhecer e tantas histórias novas para ouvir.


(Fiz esta caminhada com a Papa-Léguas e este texto foi publicado na revista Blue Living)

Finalmente um Blog

Se tanto gosto de escrever, se algumas histórias já tenho escritas... só faltava um blog.
Finalmente... ei-lo.

Algumas das histórias são já antigas e alguns de vocês receberam algumas, dos tempos em que andava por terras de Vera-Cruz.

Prometo povoar este blog com histórias novas. E mais curtas. E mais fáceis de lêr.
Dêm-me a vossa opinião.